Meadela, 20 de Outubro de 2011.
Olá Pedro, bom dia.
Deves estar a achar estranhíssimo quem seja este sujeito que por carta me vem tratar por tu, dirigindo-me a palavra? Tens razão! Não nos conhecemos, quer a nível pessoal, quer a outros níveis. A minha relação contigo, pura e simplesmente não existe. Nem o meu voto me mereceste! Aliás, não existia, iniciou-se agora, quando assumiste as funções de condutor dos destinos da Pátria. E que bela maneira de se iniciar algo como a grandeza que é presidir aos destinos do País! O meu nome é Leonel (como tantos outros neste país) e nasci no infeliz ano de 1947, deves estar a perguntar-te porquê infeliz, mais adiante te aperceberás porquê! Por ter nascido em 1947 te trato por tu, dado que nasceste uns bons anos depois de mim, em 1964, era eu um já um homem feito, pois diferentemente de agora, antigamente aos 17 anos um rapaz já não tinha direito a ser rapaz, a ser menino, ou adolescente, como nestes tempos modernos, sabendo já nessa altura e muito bem o que era a severidade da vida, ao contrário de ti, tendo-me feito homem, muito cedo. Olha Pedro, aos dez anos, sem nunca ter chumbado, terminei os estudos obrigatórios, que nessa altura eram a quarta classe, onde aprendíamos em quatro anos, aquilo que agora aprendem em doze, pelo menos! Passei quatro anos da minha vida a ir de socos para a escola e nem tinha direito a uma mochila para transportar as sebentas, era uma velha sacola de ganga de outro meu irmão e que passava de irmão para irmão. Eu era e ainda sou, o quarto de seis irmãos. Foram quatro anos a percorrer muitos quilómetros a pé diariamente, para aí uns dez, se a memória não me falha, casa-escola/escola-casa, ao frio, à geada, à chuva, ao Sol! Como os meus Pais eram muito pobres, analfabetos, vitimas de um regime opressista e abrutalhado, nem tiveram direito a estudos ou no mínimo a aprender a escrever o seu nome, o Dr. Salazar queria-nos a todos ignorantes, de modo a que não se pusesse em causa o regime, tive, após os estudos, como dizia, de ir trabalhar. E gostava de ter seguido os estudos...como gostava! Mas já nessa altura este Estado miserável, influenciava a minha vida! Melhor, toda ela, influenciou! Tinha acabado a fase tormentosa (pensava eu) das idas para a escola, dos dias de frio e chuva, mas olha, digo-te uma coisa, como gostava de estudar, ainda hoje conheço todos os rios, serras, províncias, distritos, vilas e cidades deste nosso Portugal. Infelizmente tive de a deixar (escola) e começar a trabalhar muito novo e quando mais precisava de brincar, não o pude fazer! Não havia dinheiro! Tornei-me logo homem e desatei por caprichos da vida a trabalhar. Agora eram os quilómetros a fio por dia, de socos; ao mesmo frio, à mesma geada, à mesma chuva e ao mesmo Sol, que apanhara para a ida para a escola, só que agora, (não te esqueças) homem feito com 10 anos, passava tudo de novo, mas, para trabalhar! Achas bem Pedro? É claro que não! Depois de anos a fio a trabalhar sem nunca ter chegado a rico, nunca me pagaram para isso, mesmo assim ainda juntei alguns tostões, chegou a fase de olhar para as moças bonitas! Afinal já era um homem, nunca me deixaram ser menino! Apaixonei-me por uma cunhada do meu irmão mais velho. Era linda e voluptuosa e parece que foi amor à primeira vista! Os seus longos cabelos e redondas formas deixavam-me doido de desejo! Era para casar! Certamente! Logo me cortaram as pernas, novamente. Em Angola e em outros Países de África, como sabes Pedro, vivia-se um conflito e as futuras potências ultramarinas exigiam a independência às quais em resposta o Dr. Salazar declarou guerra. Lá fui eu para o mato, para um País que nem conhecia, apenas ouvi falar vagamente, no barco Vera Cruz, para combater em nome da Pátria, contra nem sei bem o quê? Mas fui. Cumpri com o meu dever e sobrevivi, quanto a mim pensando agora, o mais importante! Foram três anos de ultramar e todos os sonhos deitados por terra, uma vida adiada em honra e ao serviço da pátria! Do Estado! Sorte a minha, a que viria a ser minha mulher, se corresponder comigo por carta e me ter sido fiel, como foi até aos dias de hoje. Fiel, séria e respeitadora! Hoje em dia, certamente a teria perdido! Qualidades que não vejo em ti, mesmo não te desrespeitando! Mas, que não as vejo, não vejo! Tu Pedro, mentiste, eu nunca o fiz!
Enfim, foram tempos difíceis e de medo, mas que passaram. O amor venceu e casei-me em 1972, tinhas tu Pedro, oito anitos. Um menino! Nunca fui um homem de muitos sorrisos, sempre muito calmo e sereno - sempre muito sério e muito introspectivo - diz o meu filho, porque sabe as dificuldades pelas quais passei e porque nunca tive nada. Se te disser que em pequeno nunca tive brinquedos, nunca tive um carrinho ou uma bola! Acreditas? E se te disser que toda a vida tive de trabalhar e que nunca me deixaram ser menino, acreditas também? Acreditas que só tinha um par de sapatos e eram para usar ao Domingo, dia de Missa, sempre cheios de pó! Onde morava, não haviam estradas, apenas caminhos de terra batida...Uma sardinha dava para seis, quando as havia e, se queria manteiga para pôr num trigo, ia ao estrugido que a minha Mãe fazia num pote de ferro negro e tirava de lá as cebolas, fazendo uma sandes de cebola! Que fome! Cuecas, eram de pano, feitas pela minha Mãe (quando vinha do campo, vida escrava) e à noite comia caldo de saramagos! Não sabes o que são? São umas ervinhas que crescem junto ao caminho de nossa casa e nos campos vizinhos! Casa de banho não havia, banho esse, era tomado numa bacia, apenas existia a latrina em madeira onde depositávamos as nossas fezes, tudo no exterior de casa! Barbeava-me em frente a um pequeno espelhinho rachado...minúsculo! Acreditas que nunca fui a um cinema ou a uma discoteca e nem tão pouco andei de avião? Acredita que é verdade! Podes não acreditar, mas nunca comprei um carro, não tinha dinheiro para isso e nem tão pouco tenho carta de condução, apenas tive uma motorizada de fabrico nacional (Casal) que me custou 5000$, paga a pronto, com as custosas poupanças que sempre fiz e aos poucos consegui juntar! Para namorar a que viria a ser minha mulher vinha e ia de comboio! Fazia cento e muitos quilómetros e não raras vezes adormecia, cansado da vida e, só parava no Porto!Tive sempre uma vida extremamente séria! Nunca tive nada, a não ser obrigações! Vi o 25 de Abril chegar e com ele vibrei, tinhas tu dez aninhos! Como me decepcionei com ele! No mês de Setembro desse ano nascia também o meu primogénito e aí, fui verdadeiramente feliz! O pobre menino filho de analfabetos, "tocou a viola" e conseguiu levar a vida com sucesso, com muito custo, mas, com sucesso. Casei com a mulher que amava e ainda hoje amo e vi dois filhos crescerem. Dei-lhes a educação que mereceram e que melhor pude dar. Hoje em dia, feliz, vejo-os independentes, vivendo as suas vidas de jovens casados! Nem sei como conseguem, dada a calamidade em que se encontra o nosso País e a anarquia em que se encontra o Mundo! Agora, aos 64 anos, envelhecido pelos desgastes da vida, reformado, após mais de quarenta e dois anos de descontos (uma vida, quase a tua idade), mais o que foi por fora...quando tinha motivos para sorrir e desfrutar dos dias que me restam, junto da minha mulher, em sossego e paz, fico em estado de choque com o teu discurso, passado na TV, pedindo a minha compreensão para as dificuldades que teríamos de enfrentar! Não a terás, nunca! Fiquei atónito, com o que dizias, Pedro! Atónito e agora pergunto. Achas bem, Pedro, que depois de sempre ter cumprido com o Estado, este mesmo Estado que nunca cumpriu comigo e me defraudou variadíssimas vezes, me venha em dois anos roubar (este é o termo certo, roubar) quase 5000€ porque, vocês, classe política, levaram este País ao caos e à ruína? É a segunda vez que vejo esses tipos do FMI aqui, a virem-nos ao bolso! Achas bem, que um veterano de guerra, como eu o sou, que serviu e combateu, pondo em risco a própria vida, pela pátria, lhe venha agora ser retirado este direito inalienável à sua reforma, ou a parte dela? Achas bem? Achas bem que o menino que nunca teve brinquedos e poucos motivos teve para sorrir, influência de um Estado, ora gordo, ora opressor, levando parte da vida a trabalhar arduamente, uma mesma vida, sofrida, venha agora por ti ser apunhalado pelas costas? Achas bem?
Eu não acho nada bem e sentado no conforto do meu lar (também o mereço) pelo qual feito um desgraçado trabalhei toda uma vida, venha agora a saber que um governo composto por rapazes, me venha delapidar monetáriamente cinco mil euros, porque o País está na bancarrota! Falando só nos cortes dos subsídios, faltam os outros que aí vêm! Ivas, IMI´S, Irs´s, etc, etc. Eu não fiz nada para que isso ocorresse e mais a mais, toda a minha vida trabalhei e descontei, para um Estado gordo e guloso e que nem agora com tanta adversidade, consegue emagrecer. E tu Pedro, que fazes para o Estado emagrecer? Tu que governas, que estudaste e sempre tiveste tudo? Nada, claro! É mais fácil ir sacanear dinheiro ao elo mais fraco, sendo por muitas vezes também, a face mais pobre! Achas bem? Já pensaste nisso? É claro que não, nunca foste usado e vigarizado e tão pouco sabes, como alguém já te disse e muito bem, o que é a vida!
Sinto-me realmente revoltado e de novo, triste, (quando penso que tinha todos os motivos para sorrir) com um Estado que toda a vida fez de mim um joguete, servindo-se de mim a seu belo prazer! Um Estado que sacrificou a minha geração, que sempre fez de nós números de identidade e meros serventes! Somente devoção, obrigação e nunca divertimento!
Percebes agora, Pedro, o porquê da expressão -infeliz ano de 1947 - no inicio desta minha carta? Toda a minha vida fui oprimido pelo Estado Português, sendo agora que envelheci, oprimido e delapidado do meu património que, à custa de sangue, suor e lágrimas, construí ao longo dos anos!
Não acho certo, nem tão pouco correcto e sirvo-me desta missiva para te mostrar todo o meu desagrado e decepção, para com a tua pessoa!
Peço-te encarecidamente, que retrates esta tua decisão, achando que ainda vais a tempo, porque este dinheirinho que é meu e fiz por merecer, faz-me muita falta! Apesar de ser um reformado, um pensionista, não achas que tenho direito a um fim de vida digno? Se calhar não o achas mesmo e nem tão pouco o queres saber, mas lembra-te que como eu, estão alguns milhares de cidadãos em choque e apavorados com a tremenda injustiça, que lhes vais cometer! Cidadãos que combateram pela Pátria e que agora essa mesma injusta Pátria, lhes cospe na cara...
Mesmo achando-me no direito de não o ser, manda a educação; que dois velhinhos analfabetos me deram, um deles, o meu Pai, ainda vivo com 105 anos de vida, (ainda mais sofrida que a minha), em ser cordial na despedida, por isso, aceita os cumprimentos revoltados e tristes de um cidadão nacional que teve uma vida pautada pelo sacrifício, motivada por negligência e influência de um Estado há muitos anos corrompido.
Cordialmente
Leonel
Nota breve - Esta carta "enviada", foi simulada por mim, face à tremenda injustiça que um Estado, gordo, calaceiro e corrompido, está a cometer a um veterano de guerra, a um Homem, que quase deu a vida no Ultramar (Angola) combatendo pelo país, durante o difícil período da Guerra Colonial Portuguesa!